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Bornéu // Serge

A viajar como nós, mas aos 73

O Bornéu foi uma feliz surpresa: pela natureza e seus animais selvagens, pelas praias e pelos viajantes com quem nos cruzámos. Como Serge, uma verdadeira inspiração

Tem mochila, também. Só o troley lhe denuncia a idade. Isso e o cabelo branco. Franzino, não lhe falta porém energia. Serge tem 73 anos e anda a viajar sozinho pela Ásia. Uma das boas surpresas que tivemos no Bornéu, terra de natureza selvagem, animais que vimos pela primeira - quiçá única - vez na vida e, claro, praias paradisíacas.

Colega de quarto em Kota kinabalu- Serge também prefere dormitórios para poupar dinheiro, qual backpacker -, este suíço reformado diplomata das Nações Unidas viajou muito a trabalho, para negociações de paz. Tem mais de 130 países no seu mapa curricular.

Mantém o entusiasmo como se fosse a primeira vez. Descreve percursos, corrige detalhes quando a memória parece falhar, conversa sem relógio. Chegou agora ao primeiro mês de viagem, completará seis como nós. Fez-se aos céus a 10 de julho, num voo até Doha. Depois foi para Bali, na Indonésia, e depois para o Bornéu, da parte da Malásia. A mulher ficou em Aruba, no Caribe. Espera-o dias depois do Natal.

Desde os 9 a descobrir o mundo sozinho

Quem o conhece sabe que é um cidadão do mundo. "Viajo desde os três anos de idade a um nível internacional. Aos sete fui para África, aos nove viajei de comboio para a Jugoslávia. All by myself. Por minha conta. Mas tinha feito esse percurso várias vezes antes com os meus pais e conhecia cada lugar, onde entrar, onde sair, onde comer, onde dormir, onde apanhar um taxi ou um comboio em determinado dia e a determinada hora".

Uma criança solitária à descoberta? Serge já em tenra idade não via as coisas assim. "Nunca estive sozinho. À chegada, um motorista do comboio acompanhou-me até à estação central, aí telefonaram para um taxista conhecido da polícia, que viria a saber em que hotel e quarto eu iria ficar e que me escoltou depois até ao porto e me deixou pessoalmente com o capitão do navio". E por aí fora ,durante uma semana, a cruzar quatro países.

"Quando visitei a ex-Jugoslávia pela primeira vez foi em 1952, quando tinha ainda sete anos. Os meus pais tinham um amigo que possuía uma ilha privada com um mosteiro católico. Lá ele acolheu órfãos da II Guerra Mundial". Foi uma viagem que se repetiu durante 16 anos. Em família, mas ele também a quis fazer sozinho.

"O meu pai e a minha mãe ajudaram e contribuíram para a universidade daqueles órfãos. Uma dessas pessoas, Martin Kulas, era super inteligente. Ganhou medalhas e tudo. Era o atleta mais rápido do país, naquela altura. Ele escapou do país comunista e teve uma vida privilegiada. Teve uma autorização especial por ser tão talentoso. Os meus pais enviaram dinheiro e roupas e muito mais até ele terminar a universidade, com notas excepcionais. Com a ajuda do meu pai, conseguiu um passaporte do governo alemão. Tornou-se um executivo de alto nível na KRUPP, que era então uma das maiores empresas industriais da Alemanha. Viajou pelo mundo todo a trabalho. Vinha várias vezes por ano, todos os anos, para nos visitar. Por não ter os pais vivos, sempre chamou os meus pais de papá e mamã".

Também Serge herdou essa veia solidária. Já emprestou dinheiro a um desconhecido, de outro país, que precisava de pagar um bilhete de avião. Anos depois, tocaram à porta de casa: era aquele homem, para agradecer e devolver a quantia.

Está-lhe no sangue ajudar pessoas a atravessar a estrada (literalmente), enquanto ele passa fronteiras. A profissão ainda abriu mais portas. Quando o cansaço bate à porta, porque às vezes bate, passa-lhe rápido. "É como apanhar um resfriado. Alguns dias depois, sentes-te de bem com a vida outra vez e é muito simples: a vida é o que fazes dela. Os nossos pais trazem-nos ao mundo, mas não para viver a nossa vida. Isso é o que nós mesmos devemos fazer".

E ele lá anda ainda de malas, de um lado para o outro, com filhas e netos, também, a viver a sua própria vida. Agora deixa-se ficar nos lugares, sem as pressas e os compromissos de outrora. Nota-se que ainda tem os seus horários e rotinas, mas é possível encontrá-lo a dormitar num sofá do hostel, perdido no tempo. É bom quando aprendemos a deixarmo-nos perder.

Segundo encontro

Lá o reencontrámos depois numa paragem de autocarro noutro vilarejo, junto ao monte Kinabalu. Vinha com as suas calças bege e camisa branca, troley atrás, mochila pequena e máquina fotográfica. Acabado de vir de uma quinta cheia de vacas como as da Suíça. Sentiu-se em casa. Tirou dezenas de fotografias e mostrou-as com aquele entusiasmo de primeira vez.

Juntos, esperámos o mesmo autocarro para Sandakan. Queríamos ir ver os macacos narigudos e os orangotangos. Não havia hora certa para o autocarro passar e muitos já chegam cheios. Os motoristas não paravam. Faziam sempre o mesmo gesto com a palma da mão, rodando-a para um e outro lado, como indicação de que não havia lugares disponíveis. Cada país tem as suas expressões gestuais características.

A espera levou Serge a voltar para Kota kinabalu, a duas horas de caminho, para de lá apanhar um expresso nocturno para Sandakan. Mais horas para trás e umas oito para a frente, mais quilómetros para percorrer. Desnecessariamente? Ele tem tempo, não é um problema.

Portugueses pelo mundo

Nós desafiámos a paciência e lá apareceu um autocarro, cheio também. Dessa vez, deixaram-nos ir no chão, ao lado do condutor. A nossa idade é outra e a coisa lá se fez, com o bónus de assistir de frente às ultrapassagens perigosas. Apanágio da Ásia.

Sandakan foi quase só pouso para dormir (a cidade não tem propriamente um cartão de visita). Os dias foram passados a alguns quilómetros dali, entre orangotangos e macacos-narigudos. Vê-los de perto é uma experiência incrível. Avistá-los do rio Kinabatangan também, num retiro de três dias na floresta, com macacos de vários tipos saltitando de galho em galho, crocodilos nas margens do rio e famílias de elefantes em passeio.

Foi mais um lugar de encontros com viajantes entusiastas, e em português! Carolina sentou-se ao nosso lado, ao almoço, e percebeu que éramos da mesma nacionalidade. Engenheira agrónoma, vive na Holanda, mas vai começar entretanto um doutoramento na Dinamarca. Estuda plantas, está como peixe na água no meio da selva. A viagem de quatro meses pela Ásia está agora a acabar. Não vai ficar por aqui. Sozinha, aos 23 anos, vive sedenta de novas experiências. Já ficou adepta de mergulho e as viagens são uma prioridade. Voltar para Portugal não. "Não pagam bem a licenciados, nem a doutorados. O dinheiro que ganho fora é justo e posso viajar sem preocupações".

Determinada, ninguém a pára. O mundo dá-lhe os empurrões que forem precisos. E os encontros que guardará para sempre no coração. Como a amizade que fez com a Ingrid e o João, que nós também conhecemos na nossa passagem por Chiang Rai, na Tailândia. O mundo é, como dizem, uma ervilha, e ainda bem que há um português (ou vários, às vezes os mesmos) em cada pedacinho.

Foi bonita a segunda despedida da Malásia, nestas margens do rio Kinabatangan. O regresso ao país também começou bem, nas ilhas Manukan, Sapi e Mamutik, com praias de água quente, cristalina, cardumes à beira-mar e o azul do céu a confundir-se com o azul do oceano. Da cidade mais próxima, Kota Kinabalu, ficará a recordação da sua mesquita icónica e das obrigatórias hijab e vestidos compridos para entrar.

E ficará, claro, Serge. Foi lá que nos conhecemos, enquanto colegas de dormitório. Não mais o vimos desde o segundo encontro fortuito, na paragem de autocarro, mas conseguimos dias depois o contacto através do hostel. Ele ainda lá estava ou para lá tinha regressado outra vez. Conversámos por Whatsapp. O próximo destino era ainda incerto. Com uma certeza: ainda há histórias para viver, para contar.