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Em Varanasi, à boleia com a vida e a morte

Recanto hinduísta puro. A ligação à terra, ao mar e à espiritualidade desta cidade labiríntica que desemboca num cais onde é possível sentir-se paz

Três numa mota, afinal, não é desconfortável e pode muito bem ser uma boa experiência. Robin, o condutor de óculos, está a estudar para bibliotecário. Dá-nos boleia a partir do arborizado campus universitário de Varanasi. Muitos estudantes chegam de riquexó, de bicicleta ou de mota. Eles e elas. Mesmo as raparigas de cara tapada por lenços conduzem as suas scooters com confiança. Conversa pelo caminho, gosta da faculdade, porque é "uma cidade à parte". O trânsito caótico do centro repele-o. É para aí que vamos, noutra boleia, essa bem paga, de tuk-tuk.

Estamos no nordeste da Índia. Depois de jantar num restaurante, ao sair para a rua, em Varanasi, é perfeitamente possível dar de caras com um corpo embalado em pano laranja, levado em braços por homens em cânticos audíveis, num corropio por entre o tráfego. Aqui há ainda um destino final depois da morte: Dashahwamedht Ghat, cais onde o corpo será benzido na água e, depois, cremado em fogueiras ao ar livre. Diante de todos, familiares, população e até dos turistas que assistem ao momento a partir do rio, em barcos com remos de bambu. Já noite caída, para o fundo da morte.

Todos os dias, 24 horas por dia, 400 mortos escolhem este recanto hinduísta para se despedirem da vida terrena. Vêm com as suas famílias de toda a Índia para o último ritual, a derradeira homenagem. As chamas ganham força, como se agarrassem uma corda para alcançar o céu escuro. Cheira a queimado, o ar abafado, o rio calmo e silencioso.

Às sete da tarde, religiosamente no pôr-do-sol, o ponto alto de devoção, com a cerimónia ganga aarti. É a adoração à deusa Ganga, nas margens do Ganges. Rio divino para os hindus, que acendem uma vela na flor de lótus vendida numa base de bambu e a atiram para o mar, como oferta. Aarti é como dizer obrigado pela luz, pela purificação do corpo e da alma. Entretanto, em outras Ghats com nomes de deusas, velhos meditam, o tempo pára. Búfalos e crianças tomam banho.

Nos pequenos barcos, estão também muitos indianos. As vestes denunciam que são de várias partes da Índia. As mãos rezam, os joelhos rezam, a cabeça reza colada à madeira da embarcação. As mães puxam os filhos pequenos para o ritual e eles sorriem de contentamento por terem cumprido bem.

No altar, sobressai o tom laranja, não dos mortos, mas dos vivos. E do fogo. Cinco homens vestidos dessa cor protagonizam o momento, dançando com cadência. O ritmo da oração fica na cabeça de quem não conhece, nem faz ideia do que diz ou significa. Enquanto isso, os sinos tocam, as torres triangulares dos templos vão mudando de tons, entre o vermelho, azul, verde e o roxo. As cores fortes emolduram as centenas de indianos fiéis que deixam o tempo passar, num ato de veneração sem pressas.

São sagradas na Índia, são imponentes e donas da estrada se assim o quiserem. Isso é respeitado. São sagradas, mas vivem nos paralelos da estrada que dividem os sentidos de trânsito ou junto a passeios que não existem, rodeadas de moscas e de fezes..

Os homens também urinam virados para uma qualquer parede, há crianças que fazem cocó na rua. .

Outras estão impecavelmente vestidas de uniforme a ir para a escola. Atrás das Ghats, grupos só de meninas e grupos só de meninos cruzam o autêntico labirinto de ruas, mais abrigado à sombra, com lojas e os seus bonitos saris, bancas de rua com fruta quente, mas apetecível. Cozinhados fervilham à vista, desenham-se chamuças nesta paisagem colorida e facilmente o estômago começa a dar horas. .

Varanasi é mais uma prova da diversidade da Índia e dos seus contrastes, logo desde cedo muito perceptíveis para quem aterra nesta cultura. Os centros comerciais, as grandes marcas internacionais e a negociação mais difícil com os motoristas dos tuk-tuk deixam transparecer que há - ou pode haver - maior qualidade de vida aqui. .

Estrangeiros chegam a passar temporadas, como o irlandês que pernoita na guest house Sandhya vai para um mês. O dono deste hotel está fora, é nepalês, casado com uma japonesa. O sobrinho de 40 anos, Kunal, recebe-nos de sorriso aberto, senta-se na nossa mesa. Com sentido de humor, diz que é um "big fan" de Cristiano Ronaldo e sai-se com uma piada: "Os indianos são muito empreendedores. Por isso é que são maus no futebol. Preferem abrir lojas em cada esquina". .

Trabalhou na banca, cansou-se e trocou essa vida pela de guia turístico. Tem trabalho agendado com a National Geographic, que vai fazer filmagens por estas bandas. "Só se vive uma vez. Devemos fazer o que gostamos e em prol da sociedade".