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Myanmar // Thabarwa

Acasos (in)voluntários

Um papel na parede e uma dica conduziram-nos até a uma experiência de voluntariado, no Myanmar, com pessoas muito doentes e pobres, numa comunidade liderada por monges que sobrevive apenas, e literalmente, de doações

As camas não têm colchão, são como tábuas de passar a ferro. As camas são também casa, com as tralhas amontoadas nos cantos e, por vezes, cheiro a chichi. Velhotas e velhotes prostrados, à espera que o tempo passe. Ou a vida. Mas quando os voluntários entram de rompante despertam sorrisos de orelha a orelha em alguns. É hora de Make Them Move, fazê-los mexer. Sabemos dizer Mingalabar (bom dia em birmanês) e pouco mais, mas a música é um elo de comunicação sem fronteiras.

São mais de 2.000 as mulheres, homens e crianças acolhidos no Centro Thabarwa, em Yangon-Myanmar, fundado em 2007 pelo monge Syadaw Ashin Ottamasara, para ajudar pessoas muito doentes e com incapacidades que encontram na meditação uma forma de minorar - ou de saber lidar - com o sofrimento. Há comida, porque os monges saem todas as manhãs para ir buscar os donativos da população da província de Yangon. Povo solidário não de um pacotinho, mas de braços e colo cheios de alimentos para dar. Diariamente. Sobrevive-se, literalmente, com a ajuda dos outros.

Ela deve ser das mais velhas, lá ao fundo do albergue de verga (?). Dois dentes e braços muito finos, blusa branca e a típica saia birmanesa apertada como um nó de toalha ao sair do banho. Faz a ginástica sentada e sorridente. Na cama ao lado, outra mulher conta só até 10 (o tempo que dura cada exercício). Também entra no ritmo, à sua maneira. Há quem mantenha as pálpebras fechadas, sem reação, alheado de tudo e de todos.

Ainda assim, nos dormitórios espalhados pela aldeia e no Rainbow Hospital, que tem mesmo as cores do arco-íris, as mulheres sempre aderem mais do que os homens. No final, há sempre um momento de dança free-style e até se apita o comboio em fila indiana. Quem não consegue andar fica a ver como se estivesse também na carruagem da felicidade momentânea.

Entre eles, os homens, muitos não aderem, alguns porque não têm condições anímicas e/ou mentais, mas chegam a surpreender. Como o senhor que está deitado, sem almofada. Tem um leque na mão e acena com os seus olhos grandes, sinal de que esteve a acompanhar tudo. No segundo andar do White Hospital, todo branco como o nome indica e aquele que tem mais condições, um grupo de cinco pacientes faz a festa. Até o nome e a quantidade dos exercícios estão apontados num caderno, não vão os novos voluntários esquecerem-se de algum. É o quarto de hora que vale pelas 24 horas dos dias. A melhor das rotinas.

As condições são poucas, mas todos fazem do pouco sobrevivência com dignidade. A partilha e a entre-ajuda, também entre os próprios pacientes, são um exemplo de como na dura vida real da pobreza e da doença, há coisas boas a acontecer.

Enquanto isso, outros voluntários ocupam-se dos cuidados que tantos precisam. Há muitas feridas para tratar nos acamados, fisioterapia para fazer, banhos para dar. Outros ainda estão descalços pelas ruas, atrás dos monges, no peditório.

Morte à hora do almoço

Alguns voluntários chegam a pedir visto para ficar meses e meses, para fazer parte da comunidade, mesmo sabendo que muitas vezes não há água, que as condições de higiene são precárias; que o lixo se vai amontoando (apesar dos projetos ecológicos em curso); que os mosquitos vêm todas as noites fazer companhia (sendo que as regras dizem que não se deve matar qualquer ser vivo) ou os bed-bugs, outros insetos, que se infiltram nos colchões e na roupa; que todas as madrugadas os uivos dos imensos cães que entram em guerra uns com os outros são banda sonora. Mesmo assim, não querem voltar para a sua zona de conforto. Quem vem de passagem, como nós, vai-se embora com muito mais do que aquilo que deixou. Imagine-se quem fica sem data para regressar a casa.



A alvorada é sempre antes das seis da manhã. O pequeno-almoço e o almoço dos voluntários são fornecidos pelo centro. Passa uma carrinha e os cães começam a uivar muito e muito alto. Alguém morreu e o corpo é retirado enquanto comemos. Os avisos de que isto poderia acontecer foram feitos logo nas boas-vindas. Assistir a tudo com uma manga descascada nas mãos é um murro no estômago. Vemos cenas de guerra e fome na televisão, à mesa, em casa, e a nossa vida continua. Aqui também tem de continuar.

E continua. Há atividades à tarde, uma delas o Pagoda Party, para levar doentes sem mobilidade a um desses locais de oração. Cadeiras de rodas e aí vamos nós, respeitando os silêncios das rezas e as paragens que os pacientes querem fazer em frente a cada um dos buddhas. É o único momento em que, uma ou outra vez por semana, saem das quatro paredes em que vivem. Há quem nunca veja sequer a luz do dia sem ser a partir da janela.

Já Higuaín - vamos chamá-lo assim pelo nome do ex-jogador do Real Madrid que aparece na camisola falsificada do... Barcelona -, sai à rua todos os dias e costuma andar sozinho na sua cadeira de rodas. É um miúdo com cerca de 10 anos e uma deficiência mental. Os voluntários dão passeios, fazem do seu transporte um carro de corridas, pegam-lhe ao colo e pintam juntos um caderno de atividades, no vão das escadas do USA Hall, o edifício que é dormitório de quem vem para ajudar e que foi construído com os donativos dos Estados Unidos.

Higuaín não fala, mas expressa-se, aponta para a nossa mão, quer apertá-la como companhia para o passeio ou jogar ao braço-de-ferro, atira o boné laranja para alguém o apanhar e o atirar de volta, escolhe o marcador amarelo para pintar o sol. Faz-se entender e é acarinhado. Amua quando a mãe (ou será a tia?) o vem buscar a meio da tarde para ir para casa.

Esta terra é, ao mesmo tempo, a casa de muitos monges, com as suas vestes bordeaux, no caso dos homens, rosa e castanho no caso das mulheres. Para além dos peditórios, praticam e ensinam meditação. Estão metidos para consigo mesmos e não devemos olhá-los nos olhos, nem ter os pés apontados de frente. São eles próprios, apenas alguns é certo, que quebram formalismos e metem conversa com os voluntários ou sorriem a cada encontro.

Depois, há os felizes encontros de nacionalidades, bem como curiosas surpresas: a primeira portuguesa que conhecemos na Ásia é de Fátima, como o Pedro, outra voluntária é uma rapariga brasileira, há italianos, franceses, holandeses, nigerianos, norte-americanos, ucranianos - quase todos jovens que estão a fazer uma pausa nas suas vidas de sempre ou à procura de si próprios e daquilo que querem fazer. A sorte que foi cruzarmo-nos com a família de quatro neo-zelandeses - mãe, pai e dois gémeos de 10 anos - que estão a viajar há quase um ano e vieram para aqui fazer voluntariado. Uma verdadeira inspiração, outra história que contaremos em breve.

Tudo acasos tão felizes, em contextos avessos aos dos nossos dias. Os primeiros foram um folheto na parede do hostel e a dica de um viajante para que a próxima paragem não programada fosse o Thabarwa. Os acasos ditam caminhos. Doris, a voluntária da Sardenha que nos recebeu e que tem visto de longa duração, diz que lhe perguntam se não é uma ideia maluca ficar tanto tempo. "Não sei se é maluco, mas agora sinto que isto é a vida real".

Nota: vídeos disponíveis no instagram